APRENDENDO COM OS PESCADORES

Frequentemente, os barcos … lançavam âncora para completar, com entroncados campesinos dessas ilhas rochosas, as suas tripulações… não se sabe bem porquê mas é entre os insulares que são contratados os melhores marinheiros.
Herman Melville, Moby Dick

Este filme nasceu de um encontro fortuito. Em 97, durante as festas de São Pedro Gonçalves em Rabo de Peixe, fomos convidados pelo Pedro Moniz a visitar a doca. O início de uma amizade.

Voltámos várias vezes, fascinados por um mundo onde valores como o trabalho árduo, a intuição, a destreza e a audácia ainda têm significado.
Fomos conhecendo os laços de profissão e as ligações familiares. A cada visita trocávamos informações. Trazíamos notícias do continente distante e partilhávamos histórias de pesca. A ideia de um filme surgiu mais tarde.

Rabo de Peixe é uma ilha dentro de uma ilha, vista com preconceito pela maioria da população de São Miguel e citada quase sempre pelos piores motivos.

Durante séculos as terras açorianas pertenceram a um punhado de famílias que exploravam servos e assalariados rurais. A situação manteve-se quase inalterada até ao 25 de Abril. Hoje, muitos terrenos pertencem aos lavradores, mas é difícil mudar de mentalidade. À manha necessária à sobrevivência veio juntar-se um agudo sentido de propriedade.

Esse mundo maioritariamente rural, de costas voltadas para o mar, tem dificuldade em compreender e aceitar a forma de viver dos habitantes de Rabo de Peixe - a saudável emulação entre as companhas e a solidariedade a toda a prova perante as dificuldades.

Os cafés de Rabo de Peixe são animados e a vida rege-se pelo ritmo da natureza. No Natal de 99 entrámos num café cheio de pescadores onde o silêncio imperava. Na televisão passavam cenas do naufrágio do Titanic.

Aos poucos fomos entendendo o peso da expressão "fundo do mar". Não conhecemos uma família que não tenha perdido um pai, um irmão, um tio, um amigo, levados pela fúria imprevisível do Atlântico. Uma dor para nós abstracta até ao dia em que jovens que nos acompanharam no filme perderam a vida. Quando um pescador desaparece no mar, todos os barcos percorrem a ilha durante semanas antes de perderem a esperança.

Vivemos a angústia da esposa do Pedro e do Artur e o choro desesperado das crianças quando há notícias de um acidente e os pormenores tardam em chegar.

Tais momentos ficaram fora do filme. O respeito por quem nos abriu com generosidade as suas portas impunha não fazer da câmara um buraco de fechadura. De fora ficaram também as entrevistas, os episódios domésticos e muitas horas de imagens de uma beleza indescritível da natureza e dos fundos marinhos. O propósito do filme é outro - fixar a forma como o trabalho pode moldar os corpos e o carácter dos homens.